29 de abril de 2024

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Capítulo 0
Prólogo

Quando ele estava prestes a escalar a trilha inclinada da montanha, a figura chegou às instalações.

Ele estava lá para apresentar uma carta de apresentação. Ele foi até a recepção e entregou a carta ao funcionário que usava jaleco atrás da mesa. O funcionário olhou-o com desconfiança quando ele entregou a carta e ele foi informado de que sua visita seria limitada a dez minutos.

"Dez minutos?", disse Ryuuji.

Ryuuji ficou surpreso que as visitas fossem tão curtas.

"Na verdade, visitas são proibidas, devido aos efeitos negativos que podem causar aos moradores", disse o funcionário.

A resposta não foi muito convincente.

Ryuuji pensou sobre os efeitos negativos. Ele certamente não era o tipo de pessoa que desejava a ninguém qualquer má vontade.

"Agora é hora do nosso passeio da tarde. Você deveria sair e ver o pátio. Você prefere ficar na sala de espera ou ir para o pátio?"

Ryuuji queria o encontro no pátio, então o funcionário o convidou para dentro. O corredor estava morto e silencioso. Um ar frio permanecia.

"Se ao menos você tivesse nos contatado com antecedência."

O funcionário mal escondeu seu tom áspero enquanto seguia em frente.

"Eu posso fazer uma concessão dessa vez."

"Obrigado", disse Ryuuji, inclinando de leve sua cabeça.

Se a memória não lhe falhava, ele havia marcado um horário no dia anterior para marcar um horário de visitação. Deve ter sido uma simples falha de comunicação. O horário de hoje foi confirmado por este mesmo funcionário, e como não faltavam muitos dias para o seu passe de ônibus, Ryuuji veio até aqui.

"Têm certas coisas que você deveria saber", disse o funcionário sem olhar para trás. Ele permaneceu ali com confiança. Ele tinha a atitude de alguém que estava acostumado a estar no topo da cadeia alimentar.

"Por favor, obedeça os limites de tempo da visitação. Por favor, não se sinta desconfortável perto dos residentes que falam de forma estranha. Além disso, itens como facas e lâminas de barbear, fósforos ou isqueiros, explosivos e produtos químicos são proibidos. Você está pronto?"

"Tudo bem se eu pular o juramento escrito?", disse Ryuuji.

"O quê?"

O funcionário se virou com uma expressão surpresa no rosto. Ele continuou em um ritmo acelerado como antes, e foi capaz de se manter firme com Ryuuji, que tinha mais de 180cm de altura.

Os dois continuaram andando lado a lado e conversando, enquanto Ryuuji tentava pensar em um plano. Ele continuou falando.

"Acho melhor que você concorde em não preocupar a si nem as autoridades com qualquer coisa que aconteça nessas instalações. Isso daria um bom filme de suspense, não concorda? Fala-se isso quando um diretor pretende transmitir uma sensação de tensão desde o início da  história. Isso faz o coração disparar. Quando criança eu fazia meus próprios desenhos e sinais secretos, era uma espécie de sonho meu. Por mais bem pensado que seja, ver frequentemente aquele outdoor com design parecido no estacionamento da loja de conveniência desta área, fiquei meio desiludido. O pássaro azul perto do outdoor também não parece muito feliz com isso", disse Ryuuji.

O membro da equipe acenou com a cabeça.

"Eu tenho dúvidas sobre a felicidade em si", Ryuuji adicionou.

Houve uma pausa por um momento.

"A placa é desnecessária", brincou o funcionário.

O funcionário mais uma vez expôs sua opinião sobre a situação.

"Ao vir para cá, quase todo mundo melhora. Quando você ligou, informamos que havia regulamentos simples a serem seguidos."

"Ahhh..."

Ryuuji assustou sua companhia com um grito repentino.

"Droga. Eu tenho um doce comigo. Tudo bem?"

Ryuuji procurou um doce no seu bolso, tirou um e ergueu-o até o rosto para seu companheiro ver, e apontou para a embalagem plástica.

"Olha isso aqui. Isso é pontiagudo. Não é perigoso?", perguntou Ryuuji.

"Bem..."

O funcionário, como se estivesse prestes a dizer algo, engoliu em seco e depois falou com uma voz baixa.

"Isso não é um problema."

"Entendo. Bem, isso é bom."

Ryuuji estendeu seu doce com um sorriso.

"Experimente. Tem sabor de cola."

"Não, obrigado."

A expressão do funcionário agora estava como a de uma máscara noh*. Ele se virou e começou a andar num ritmo rápido. Parecia que estava se esforçando demais para se livrar desse estranho.

No entanto, por mais que tentasse, ele não era capaz de fugir ou afastar cruelmente aquela pessoa que carregava uma carta de apresentação da CC Corp. Japão. Ryuuji não gostava de pessoas que agiam com arrogância através de uma autoridade emprestada.

Finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, chegaram a uma porta. O funcionário girou a maçaneta para abrir a porta e então convidou Ryuuji para entrar. Ryuuji viu o pátio espaçoso. Parado na soleira, ele viu um muro de pedra coberto de musgo verde e úmido que se estendia para o outro lado, cercando uma variedade de árvores sob um céu azul sereno.

"Lembre-se, as visitas são limitadas a dez minutos. Quando o bate-papo terminar, avise a recepção. Tudo bem assim?"

Parecia não haver outra escolha. Ryuuji se virou e passou pela porta.

"Ah, por acaso você tem um cronômetro?"

"Não."

A porta se fechou na ponta do nariz de Ryuuji com um baque surdo. Então o som de passos morreu, deixando Ryuuji sozinho na beira do pátio.

Os residentes podiam ser vistos ao redor do pátio em grupos de dois e três. Todos estavam vestidos da mesma forma, por isso eram indistinguíveis à distância. A temperatura do pátio era confortável. Estava em meados de maio, época em que tudo é muito exuberante e verde. Era meio da tarde e o sol estava refrescante.

Isso era bom, mas o pátio era muito grande. Parecia um pequeno parque urbano. Ryuuji não se importava com o horário de visita só porque havia "regulamentos simples a serem seguidos" e considerando o quão difícil era chegar a este lugar, ele estava um pouco farto de regras. Mas ele acreditava que realmente havia encontrado o que procurava.

Ele encontrou facilmente.

Um homem estava sentado quieto, como uma estátua, num banco instalado numa área sombreada do pátio.

Dobrando a página em forma de orelha de cachorro, ele fechou o livro antigo que estava lendo atentamente e colocou-o sobre os joelhos. À sua direita, uma bengala estava apoiada no banco.

Conforme Ryuuji se aproximava, o homem ergueu sua cabeça e encarou Ryuuji com olhos examinadores.

A idade real do homem era difícil de determinar, mas ele não parecia ter trinta e poucos anos. Poderíamos esperar que ele tivesse, no máximo, quase trinta anos. Ele usava óculos finos de cor clara e tinha um rosto esguio e bem definido.

No entanto, o que chamou a atenção de Ryuuji foi que vários anos sem receber luz solar suficiente deixaram o homem com um tom de pele pálido, quase azul.

"Olá. Tempo bom, não é?" disse Ryuuji.

"Sim, é", respondeu o homem educadamente.

"Estava frio agora há pouco, mas está muito melhor agora."

Enquanto ele dizia isso, os olhos semicerrados do homem se moveram, olhando de cima a baixo para o terno de Ryuuji.

"Você é um residente aqui?" perguntou Ryuuji.

"Sou", respondeu o homem.

Ryuuji assentiu.

"Você é um conhecido meu?" perguntou o homem.

"Sim", respondeu Ryuuji.

O homem forçou sua boca a um sorriso.

"Sinto muito. Minha memória tem agido meio estranha ultimamente..."

"Meu nome é Ryuuji. Ryuuji Sogabe."

"Eu sou Jyotarou Amagi."

Enquanto o homem se apresentava, ele colocou o livro ao seu lado.

Ryuuji passou um cartão de visitas para Jyotarou e sentou-se ao lado dele.

"Na verdade, primeiro, tem algo que eu quero perguntá-lo, Sr. Amagi."

Jyotarou inclinou ligeiramente a cabeça para olhar o cartão de visitas que recebeu.

"Consultor de problemas de rede...", Jyotarou leu em voz alta.

"Eu lido com vários problemas na Net. Bem, é algo como uma agência de detetive."

"Como eu disse antes, minha memória não é das melhores. Se diz respeito ao meu trabalho, receio não poder discutir", disse Jyotarou.

Ele parecia cauteloso ao ouvir a palavra 'Net'. Era uma reação natural para aqueles que seguiram no ramo, como Jyotarou Amagi.

"Isto não é um problema", respondeu Ryuuji de maneira fingida e indiferente.

"O nome 'Geist' lhe diz alguma coisa?" perguntou Ryuuji.

"Bem, vejamos. Isso não significa 'espírito'?" disse Jyotarou com um tom confuso.

"Se me lembro bem, acho que é algum tipo de termo filosófico. Oh, já ouvi falar disso. Sinto que já ouvi esse nome antes... de um artista paisagista europeu." continuou Jyotarou.

Enquanto procurava em sua memória e falava lentamente, Jyotarou olhou para Ryuuji.

"Fora isso, não me lembro de nada", disse Jyotarou.

Ryuuji olhou nos olhos de Jyotarou. Havia uma mudança em sua expressão facial. Ela não mudou com a conversa sobre o tempo. 'Tempo bom, não é?', 'Sim, é'. A essência de Jyotarou não foi afetada por aquele assunto.

"É mesmo? Bem, de qualquer forma, obrigado", disse Ryuuji.

De repente, um som que parecia um xilofone soou em um alto-falante em algum lugar da instalação.

Jyotarou virou a cabeça e murmurou para Ryuuji.

"A pausa do almoço terminou. Preciso voltar para dentro."

Ryuuji se levantou.

"Obrigado pelo seu tempo. Foi bom encontrá-lo."

"Você está satisfeito com minhas respostas? Bem... com o que posso lembrar, afinal."

Jyotarou pegou sua bengala e levantou-se lentamente.

"É claro. Você foi de grande ajuda. Ah, você esqueceu seu livro", disse Ryuuji.

Ryuuji pegou o livro e o passou para Jyotarou. Ryuuji viu o título, que se lia 'Vijnapti-matrata'**.

"Este deve ser um livro difícil. É do Budismo?" comentou Ryuuji.

"Sim, é. Eu peguei emprestado com um colega de trabalho há muito tempo e não consegui devolvê-lo. Estava esperando a oportunidade de lê-lo e, agora que estou aqui, acho que encontrei, mas não é fácil de ler."

Jyotarou acariciou a capa do livro com um sorriso amargo, murmurando para si mesmo.

"Pouco antes de eu vir para cá, tive uma grande briga com esse cara no trabalho. Fiquei com muita raiva."

Ryuuji permaneceu em silêncio.

"De certa forma continuo com raiva, porque não posso voltar atrás e tornar as coisas melhores", continuou Jyotarou.

De repente, o vento soprou e assobiou por entre as árvores. O vento era refrescante e frio, uma mudança em relação ao calor do pátio.

O corpo de Jyotarou tremeu.

"Que frio. Que brisa forte, não?" disse ele.

"Oh, por favor, entre. Vou ficar aqui um pouco e aproveitar o ar", respondeu Ryuuji.

Jyotarou fez uma reverência e voltou, andando com sua bengala para dentro das instalações. Ele arrastava sua perna esquerda desajeitadamente.

Ryuuji esperou até que as costas de Jyotarou não estivessem mais à vista, então tirou do bolso um terminal de dados portátil e tocou suavemente o painel com o dedo, carregando a função de memorando. Um alerta de mensagem foi exibido instantaneamente na tela.

1:02pm, 19 de  maio, 2023.

Durante a visita de Ryuuji, ele foi contatado pela prima de Jyotarou, praticamente sua única parente, Saika Amagi. Nessa mensagem, ela explicou seu conhecimento sobre a condição de seu primo, Jyotarou, que foi diagnosticado com: perda de memória. Após mergulhar no ciberespaço como "carne e osso", Jyotarou pagou por seus feitos ao retornar ao mundo real.

Sua memória acaba no ano de 2015. Ele agora acredita que trabalha no megaflutuante da costa de Urayasu. Depois de causar uma grave perda de dados para a empresa, ele foi transferido para sua atual localização em Odaiba, Tóquio... Ele acha que o incêndio que iniciou é tudo um sonho. Para ele, é uma coisa do futuro.

O colega de trabalho com quem ele brigou foi provavelmente Banshouya Jun. Junto com Jyotarou, ele participou do projeto ultrassecreto da CC Corp. como líder da equipe. Ele morreu há muito tempo atrás.

Conforme Ryuuji lê o texto, ele suspira profundamente.

Enquanto Jyotarou lê o livro que pegou emprestado de Banshouya, ele espera pelo dia em que o encontrará novamente.

Embora deseje se reconciliar, ele continuará a ler o livro nesta instalação indefinidamente. Porém, nunca chegará o dia em que Jyotarou terminará de ler aquele livro. Sua memória continuará sendo redefinida para o ano de 2015.

Não sei se a Deusa do Mundo talvez mostrará alguma misericórdia e compaixão à condição de Jyotarou. Muito poucos sabem como as coisas vão acabar. Por isso, todos são responsáveis pelos danos que ele causou.

Após desligar o terminal de dados portátil, Ryuuji pensou se deveria ter contado algo a Jyotarou ou não.

Ao menos, este foi o único motivo para ir visitá-lo.

No entanto, talvez fosse melhor se ele explicasse assim — Mesmo após ele ter deixado 'O Mundo', o 'Geist' de Jyotarou Amagi ainda vagueia até hoje.

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NOTAS DA TRADUÇÃO
* Máscaras usadas numa forma clássica de teatro profissional japonês (Noh).
** Vijnapti-matrata (Tese das Cognições) é uma tese budista que estabelece que toda existência é subjetiva e nada existe fora da mente.

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